Friday, June 18, 2021

Comédia satírica(1879) escrita por Guilherme de Azevedo e Guerra Junqueiro, que a assinam com o pseudónimo "Gil Vaz", o mesmo que utilizavam nas suas crónicas humorísticas da Gazeta do Dia. A edição desta obra, que pretende retratar a "desmoralização política e social contemporânea", surge anotada por várias figuras destacadas do meio literário português, como Antero de Quental, Alexandre da Conceição, Magalhães Lima, Oliveira Martins e Pinheiro Chagas, entre muitos outros.----------------------------------------------- Meu caro Taborda A noite de 17 de Janeiro de 1879 foi a mais tempestuosa de que há memória, tanto na plateia do Ginásio como nos dramas da Rua dos Condes. O assobio silvava no ar com violência, os raios cruzavam-se na atmosfera com castões de marfim, enquanto da segunda ordem, sobre os chapéus altos dos precitos, caía uma chuva torrencial de cadeiras de palhinha. Era um inferno! A consciência de Gil Vaz sentia-se nessa hora um pouco satisfeita, pois que ele, comendador excepcional, tendo a certeza de haver feito uma obra infeliz, não podia limitar as suas ambições a ver o seu nome citado como o dum talentoso confrade nas locais do Sr. Quirino Chaves, ou elogiado como o dum dramaturgo consciencioso nas correspondências do Sr. Carrilho. Quando temos a certeza de haver feito uma obra literária má, já é uma doce consolação que o noticiário nacional a considere de todo o ponto detestável. O meu amigo, que nunca tinha visto assim desencadeadas em volta de si as fúrias do temporal, foi verdadeiramente heróico nessa noite, procurando salvar dos horrores da tormenta um relatório irremediavelmente perdido de antemão. Certamente merecia por tal feito a medalha de ouro que o Diário do Governo, de quando em quando, confere à «generosidade e à filantropia», se o Governo por motivos políticos de consideração não se recusasse obstinadamente a praticar esse acto de justiça. Ofereço pois este livro a si e aos seus colegas que tanta coragem desenvolveram na hora do perigo, não exigindo que de futuro o tragam ao peito como ornato, nas ocasiões solenes, mas que simplesmente o guardem nas suas gavetas como lembrança dum relatório que, depois de viver o espaço duma pateada, intenta ressuscitar para viver o duma primavera. GIL VAZ Não é um prólogo que eu escrevo para o relatório de Gil Vaz, é simplesmente uma nota constituída por algumas linhas de prosa em que vou dizer, com toda a sinceridade, o que penso da Viagem à roda da Parvónia e da pateada com que o público a festejou na primeira noite da sua aparição. Ao que me parece, o segredo da queda do relatório de Gil Vaz é facílimo de investigar desde que o leitor tenha a paciência de o ler. Em primeiro lugar, este relatório não é uma obra de teatro: falta-lhe a estrutura cénica e as condições indispensáveis numa produção de tal natureza. Ora toda a gente sabe que uma obra destas, por mais sensata que seja, desde que deixou de ser lida no parlamento, por exemplo, para passar a ser lida no Ginásio, saiu do meio natural em que lhe era dado fazer dormir, para entrar noutro em que só podia ser pateada. Em face desta verdade tão simplesmente enunciada, baqueiam todas as teorias formuladas a respeito da queda de tão conspícuo como moderado relatório. O espírito público, que muitos pensaram indignar-se pela crueldade da frase e recomendação da polícia, apenas se indignou, instintivamente, pela má divisão das cenas. Os espectadores ainda podiam perdoar que o pensamento aparecesse um pouco nu, mas o que não perdoariam nunca era que às actrizes não sucedesse o mesmo. Um regime offenbachiano de quinze anos produz destas ambições salutares, tanto na política como no teatro. A Viagem à roda da Parvónia, em todo o caso, é uma obra de sinceridade posta em quatro actos e seis quadros. O Governo Civil, proibindo-a no dia seguinte ao da primeira representação, como atentatória da moral pública, prestou- lhe a maior homenagem oficial que estava na sua mão, distinguindo-a no meio da degringolade geral em que nada mais lhe era dado proibir, tanto nos costumes como na literatura. À primeira vista parecerá um desacato que Gil Vaz no seu relatório represente, sob o aspecto de D. Quixote, o chefe do poder executivo presidindo a um conselho de ministros pantagruélico, excedendo os limites imagináveis e possíveis do burlesco. Esta noção cómica do poder executivo foi transmitida a Gil Vaz pela história do seu tempo expressa no jornalismo, nas discussões parlamentares, nas polémicas partidárias, nos panfletos e nas valsas quotidianas. A diferença de aspecto dos dois personagens consiste só em um andar vestido segundo Keil e outro segundo Gustavo Doré. Isto é: a Viagem à roda da Parvónia não é uma inspiração de Gil Vaz; é simplesmente inspiração dum estado social e político reconhecido por todos. Hoje tirado do meio ruidoso da cena e colocado na pacífica serenidade do livro, este modesto relatório vai decerto encher de arrependimento muita gente que uma noite o pateou, iludida pelas transfigurações teatrais. A Viagem à roda da Parvónia como afirmação política pode ser exemplo a parlamentares: em face das discussões jornalísticas, pode ter o valor dum lugar selecto, tal é a moderação de linguagem em que está escrita, a brandura das alusões, a modéstia dos epigramas, a ingenuidade da sua crítica posta em paralelo com os artigos de fundo, que, durante o período constitucional, têm feito a educação de duas gerações. Gil Vaz não tem pois que arrepender-se da intenção que lhe ditou a sua obra, porque antes de tudo ela é o relatório sincero da desmoralização política e social contemporânea. . GUILHERME DE AZEVEDO

2 comments:

Unknown said...

Check https://oplanetadosmacacospoliticos.blogs.sapo.pt/viagem-de-fim-de-ano-23856?view=168752#t168752

Unknown said...

Primeiro escrita para ser usada como peça teatral e depois passada a livro, a Viagem à roda da Parvónia suscitou uma das mais tumultuosas contestações de que há memória. Disse Antero de Quental, a este propósito: "O público protestou contra a caricatura, provavelmente porque se viu nela.Com efeito ,se esse público aplaudisse o quadro da própria ignomínia,que lhe era apresentado,seria além de tudo o mais,cínico.Não o é,toma-se ainda a sério.Pode ser que às vezes,em momentos raros de lucidez relativa,desconfie de que é tolo.Mas não o reconhece e não admite que lho digam.É um sintoma de que desorganização não ataca ainda o intímo do ser.Prova que a corrupção idiota da sociedade de Lisboa é mais o resultado lastimável de condições externas,do que de uma perversão intima e expontânea.Depois o riso é um dissolvente,não é um remédio.O riso amolece,relaxa e acaba por tornar imbecis aqueles mesmos que o empregam contra a imbecilidade alheia.Quando um povo chega a rir-se de si próprio é porque perdeu uma boa parte,senão a melhor parte,da sua virtude colectiva.Tornou-se talvez mais gentil,mas os povos gentis estão muito longe de serem os povos fortes.Receio um tanto que a espirituosa purée de epigramas e ditos venha mais tarde,daqui por alguns anos,a reconhecer-se pouco substancial e até causadora de certa anemia moral.Se há gangrena nesse corpo social(sociedade de Lisboa),e tantos sintomas rapidamente acumulados o estão denunciando,é o cautério,é o ferro em brasa que convém aplicar-lhe,e rudemente,firmamente,porque se não brinca com a gangrena."(Antero de Quental em 1879)